27.3.10

era de ouro

de sábado para domingo numa sala de cinema, na companhia do meu ator preferido, um ou outro gole d'água e duas lágrimas antes do the end. comigo esse tipo de coisa não vem: o amigo me disse que chorou tanto no final de '500 dias com ela' que a mulher do lado perguntou se tudo estava bem e até o convidou para ir a um bar depois de lá. eu, por minha vez, sou entusiasta das fileiras vazias, o que não é difíil de se achar de madrugada. sempre gostei assim, desde os 16. ônibus, taboão para o top cine - e foi lá onde tudo começou: rohmer, raspadinha, visita à livraria, viena, duas gotinhas de lágima (artificial) em cada olho para as lentes de contatos. depois que acabou, no sábado depois, tudo que eu queria era conhecer o le jazz

17.3.10

talk

de quando você para o carro no meio da rua para que o outro desça e escale a morada. o horário não é de se ter emissora no céu ou no chão patrulhando o trânsito, mas um ou dois veículos querem que você siga em frente. de quando não há o que fazer além da descida, saída e batida de porta, findada a fala do até a próxima, mas não há menção de que o outro vá abandonar o veículo. de quando o som está baixo, mas você é capaz de reconhecer o roquezinho do mar do norte que nunca quis dizer nada demais e hoje passa a dizer tudo demais. o carro treme com seu pé vacilante na embreagem, a mão ainda no volante, tremelicando ritmada, bem de levinho, sua cabeça voltada discretamente para a direita, os quatro olhos que brincam de dançar o silêncio, e você se esquece, por ora, da marcha engatada em primeira, e logo o outro mostra o desejo de terminar de contar a história de virada de poucas esquinas atrás, e você estaciona de mau jeito em frente a garagem alheia, já que, àquela hora, ninguém vai se importar mesmo, e um conto é exposto com a maestria de um narrador que sabe a mágica de envolver pelo olhar, pelo sorriso, pelas ruguinhas dos cantos dos olhos, ao mesmo tempo em que, um tanto alheio, você sorri, consente com a cabeça, faz um ou dois comentários curtos, mas sua atenção dispersa, ora no volante, ora na boca ao lado, ora na música de fundo, ora no entorno sombrio, tornam a sua própria manejada de cabeça e a constante aproximação do outro quase imperceptíveis, dois corpos que vão se atraindo com a sutileza do passar do dia: quando se dá conta, tudo escurece - ou clareia de vez. de quando você esquece que tem carro, música, garagem e domingo, de quando desaprende que você é você e que o outro é o outro, de quando um brilho chega de cima, os olhos se fecham e vem um mergulho que dura um mar sem fim.

9.3.10

Goma e água morna

Sob a água foi a questão: conhecer de interiores quase mentiroso. Um jogo. Tão bom. Segundo sua boca, já não havia mais novos sabores e cores de bolotas de chiclete para a gente conhecer. Você desceu, fui junto. Você sumiu, eu também. Você voltou, eu precisei ligar e saber se ela já voltaria. Tão gostoso. De grudar a vista.

3.3.10

neorrealismo italiano

um coçar de som áspero. no escuro. uma barba que custa a ser extirpada. no claro, eu vejo sua letra: algumas pontas, ls grossos e pontudos, linhas que escapam das linhas e dão quase uma volta. você é do tipo que gosta de cadernos grandes e com pauta. e eu rio - por dentro, porque, do seu lado, o silêncio é de ser absoluto -: você pula quatro linhas para começar a anotar a aula - por mais que a página seja continuação da anterior - e faz tudo direitinho: dois dedos, parágrafo, letra maiúscula; até fico meio sem jeito nos raros momentos em que (penso que) você vira para mim e olha a minha letra, toda bagunçada, toda sem pauta, sem parágrafo, com flecha, grifo, rabisco. mas você gosta de rabisco que eu sei, e de uma cor só de caneta - bic preta, seco assim - que você guarda no bolso da mochila, nem estojo você tem. e nem leva nada na bolsa, eu percebo quando você a joga no chão. no máximo, um guarda-chuva xadrez nestes dias de janeiro molhado. uma vez você saiu bem primeiro e fechou o portão, eu estava bem atrás; depois, quando saí, você olhou, daquele jeito. e eu gosto do jeito que você fica preso na sala de aula, não desce nem para um café, banheiro, água, eu até me sinto minha mãe com o café pra lá e pra cá, falta um cigarro que complete, e eu nem fumo, nem você, uma bênção, me empresta suas anotações que eu me atrasei pra aula, e que bom que você não me enche o saco de tantas vezes que eu me atraso - é o trânsito, a mãe, o pai, o cão, o dilúvio, a irmã que usou o carro, você sabe, a vida fica cheia de entraves de vez em quando. mas você prefere ficar jogando no celular em vez de falar qualquer coisa comigo, por quê? e por que eu prefiro fingir que leio o jornal em vez de falar qualquer coisa com você? assim fica mais difícil, eu vejo os pobres haitianos e soldados e volto ao mesmo parágrafo, vou, volto, olho para o lado, essa leitura não continua, e o professor volta para sala, e é a vez de eu me voltar pra ele e depois pra você. e, uma noite, aquele chuva que me fez correr pro carro, e você a continuar na rua, contra-mão, e eu a procurar pelo guarda-chuva xadrez. tem de ser por aqui, entre angélica e pacaembu, grande mancha, você pode ter ido pro ponto de ônibus alternativo, pegar carona, comer na padaria, mas eu sei que você foi andando. mas minhas investigações não funcionam muito bem. eu pensei que você ficasse com games e mais games em casa, mas não é assim, você tem um quê de comum, facebook, msn, vamos ver o filme que o professor contou hoje, amanhã augusta, francês novo, depois tem aniversário da Mônica, vamos?, cara, tive prova de emprego ontem e só dormi duas horas, não consigo mais dormir cedo, cara de sono, suco de laranja e torta salgadinha na padaria da esquina, e na livraria da esquina, você já foi?, são apenas quatro aulas para o fim do ciclo, e eu me lembro de quando eram muitas semanas, um ano todo, era mais fácil assim, mas eu tenho medo de ser rápido assim, como meus amigos são: supermercado, praia, pier, guanabara, camburiú. eu me reservo ao meu direito de ficar calado, você se reserva ao seu direito de espalhar um tanto de paixão pelos cantos da cidade que eu aumento o volume do rádio no carro, a chuva cresce, eu não posso correr e os vidros não podem embaçar e o celular toca, treme no bolso da coxa da calça, e uma luz real, sem luz artificial: plano aberto, corte. o corte faz o direitor. e o texto continua.

2.3.10

finally

- eu gostei daquela noite em que você me desenhou - ela disse.

um ano que não se viam. ele parecia ser do tipo que esquecia fácil das coisas.

- é, não lembra? no encontro das ilustrações. foi num boteco da augusta, com seus amigos. todo mundo com caneta colorida, papel manchado de cerveja... até eu entrei na dança.

ele, finalmente, se lembra. a menina acha aquilo tudo esquisito, mas é sequestrada do mundo, de novo, pelo sorriso dele.

- por que a gente não se viu de novo, né?

ele pisava no pé da menina de vez em quando, bem de levinho. ela gostava da brincadeira.

ele falava das coisas da vida dele. ela, das coisas burocráticas do mundo dela.

ela podia beber três drinques que não ficava soltinha. ele, sim. o pegar no cabelo dela foi o sinal.

- por que a gente não vai lá em casa assistir mais um do ozu? você, que é toda do cinema... tenho vários japoneses, lembra?

ela não prestou atenção e pediu mais um drinque.