28.1.08

o pedaço público do transporte público escapava de perceber. instrumentos: auto-falantes portáteis nos ouvidos e livro nos olhos.

pode-se escapar de outras formas: ir ao inferno, beber das poções, fitar os olhos e desviar quando se é percebido pelos que também escapam.

uma outra maneira é a troca da ptialina com o próximo que compartilha o mesmo desejo do escape. esta, aliás, é a maneira mais bonita de escapar. mas, cuidado, pode doer.

27.1.08

cidade de luz e sombra ou 'rehab'

nós separados em cápsulas que navegavam e, quando-quando, encontravam-se na cidade de luz e sombra.

nós unidos, solda viva, na cidade de luz e sombra.

quando-quando, vontade era a de soldar e encapsular, botar luz e sombra e mandar tudo ir.

é que os braços eram de um tal formato e temperatura que faziam com que qualquer som chegasse bonito aos ouvidos. faziam com que todo aquele que possuísse braços chegasse bonito.

24.1.08

de quando alguém chega do nada e você tem medo de sentir

eu, que já andei pelo mundo prestando atenção em cores, já não me reconheço mais.

aquela criatura de Nápoles que pinta os olhos e a boca e me faz rir já me existia quando eu via o azul, o amarelo, o anil e até o violeta; quando eu sabia diferenciar só com olhadelas uva rubi da itália, maçã ácida da açucarada, fruta que amarra da que adoça; quando eu podia reparar no cotovelo dos meninos, rosados ou quase roxos, machucados ou quase lisos; quando eu via as cores de tudo: pêlos, pintas, sardas e olhos que mudam com o sol.

aquela criatura que veio do nada com toda a trupe às minhas terras fez com que eu, que existia para ela desde um sempre colorido, pouco a pouco não existisse mais. fez com que eu andasse nos dias de disjunção pela grande avenida em que a garoa é tão fina que não tem direção certa para pousar, e olhasse todos aqueles devoradores de milhos, telefones celulares e cafés expresso e não reconhecesse mais suas cores.

aquela criatura circense e melancólica me veio e eu nunca imaginei que fosse capaz de fazer com que as únicas cores de minha vida se tornassem as de suas vestimentas, de sua pintura facial e de seus verdes. ela não pediu permissão e, lentamente, tirou o que era meu. e eu não aprendo: não páro de pensar em seus truques aprendidos no circo, eu não paro de pensar na hora que chegará, tirará a maquiagem e dirá "sente-se aqui".

algumas noites, ao me deitar, deixo as comportas do rosto se romperem e choro. porque não quero, porque não posso voltar no tempo e fazer com que o que é sentido pela criatura se deturpe inteiro. é que o circo, um dia, vai embora. então eu ajoelho e peço que venham outras que possam, ao invés das cores, fazer com que eu não perceba texturas, profundidades, formas definidas, que seja, mas, por favor, que tome o lugar onde está pregada a criatura napolitana que me tirou de mim; é o que mais peço. encarecidamente. amém.

16.1.08

cuidado com o mesmo

o escritor acordou confuso feito o David de seu conto. e, redigindo um texto como este, se confundia com o conto, porque ele, o escritor, é David, David é ele, e eles são a Folha, a piauí, o Lynch, o Almodóvar, a rua Augusta e o Jornal Nacional. eles bebem do mesmo café, da mesma água, respiram do mesmo ar e comem do mesmo pão de queijo recheado com requeijão.

todos são os mesmos nas mesmas lojas, nos mesmos cinemas e nas mesmas pistas de dança, onde o escritor sempre dança as mesmas músicas oitenta com os mesmos e tromba sempre com os mesmos nas mesmas ruas dos mesmos bairros. por isso, ele sentiu um alívio lá longe, no anonimato do verão, atrás de óculos escuros e lambuzado de protetor solar. lá longe se tem Guarulhos, São Bernardo do Campo, Maringá e São Paulo, mas todos fora de seus lugares, todos longe de suas origens, todos também de óculos e lambuzados, todos na cena inédita.

o escritor se acha a pessoa menos egoísta desse mundo (ou pelo menos a pessoa egoísta menos velada desse mundo) e anda refletindo sobre o egoísmo que tem a ver com Narciso e com ele. é uma ligação não direta, não é um fio que vai de um ao outro, mas é aquilo de os olhos ficarem se fitando no espelho, como a Tereza do Kundera faz para procurar sua alma. só que o caso do escritor é um pouco distinto: ele sofre é de procurar um pouco de si nos livros, nos filmes, nas canções, nas filas dessa vida. e isso o aflige porque, no meio do mesmo, ele sempre busca, busca, busca e nunca encontra; e o pior é que nem sabe muito bem o que busca, se é mesmo a si mesmo ou se é o mesmo, mas um outro mesmo, um mesmo ele quer por perto até o fim de seus dias, como dizem os poetas.

[no dia seguinte da primeira rejeição, David acordou confuso. a janela entreaberta, a persiana fechada, as portas do guarda-roupa escancaradas e um pouco de luz iluminando a metade inferior do quarto. sentiu uma vontade incontrolável de mijar.]

8.1.08

o xampú e as terras

eram frascos que pareciam garrafinhas, e as cores hoje me lembram os anos noventa. eu não entendia muito bem o que era o aloe vera ou a camomila dos rótulos, mas gostava de massagear meus cabelos com aquele xampús do snoopy. tinha o rosa, o amarelo, o azul... não me lembro bem de todas as cores, mas sei que não me apetecia muito o azul. deve ser estranhamente porque não existem comidas naturalmente azuis... refletia sobre isso desde muito cedo; umas das maiores questões da minha vida era se existiam frutas azuis-azuis. eu chegava à conclusão de que, não, elas não existem. mas, quando cresci um pouco e já tinha alguns pelinhos, descobri que existe blueberry. sei lá, bagas azuis. mas nem são tão azuis assim, vai.

eu corria na rua calçando chinelos, mas meus pés ficavam pretos mesmo assim. não sei como. e eu andava de bicicleta, de patins, tentava pular muros, jogar queimada, roubar frutas. e suava. eu tentava ser um moleque da rua, mas era pela metade, porque fazia as coisas de mal jeito, ou incompletas, para tentar não ser mau naquele mundo de divisões. chegava em casa e me lavava com o snoopy, e meus olhos nem ardiam. o gosto do xampú também nem era tão ruim assim; é daquelas coisas que uma vez na vida precisam ser sentidas.

nos tempos do xampú do snoopy, eu não me preocupava com tanta coisa que me cerca. ainda mais coisa-gente, essa coisa meio estranha que cerca todos no mundo, quase como uma uma cerca gigantesca maior que a muralha da China, demarcando uma fazenda mais gigantesca ainda, meio onírica, ora de terras improdutivas, ora de terras férteis, que às vezes é invadida ou ocupada -- dependendo de como se vê -- pelos que não têm terras, ou pelos que as têm e querem ter mais, mais e mais e experimentar todas as cores e texturas de solos existentes, como se existissem fazendas de argila, tchernozion, latossolo, terra-roxa. uma vontade obsessiva de querer ter e ser todas as terras, viver em diferentes fazendas, ser regado por diferentes águas de diferentes chuvas de diferentes céus de diferentes continetes de diferentes planetas.

minhas terras são meio afastadas, e nem sempre invadem as minhas cercas. de vez em quando, quebram alguns fios de arame farpado e tentam entrar, mas a maioria se vai embora. e eu permaneço em minha província; mas não agüento muito as minhas raízes presas na terra e me vou, inicio uma jornada de busca eterna, mas não invado outros reinos. prefiro avistar de longe as terras de outrem, tudo na metade, como nos dias de xampú em que eu era moleque pela metade. e não há quem me diga que o meu reino é onde os olhos alcançam, como no desenho da época do xampú, porque eu olho para os outros reinos de outras cercas e todos eles me apetecem, e todos eles eu chamo de meus reinos, e todos eles eu quero ter. não são reinos azuis, são rosas, amarelos, têm cheiro de xampú do snoopy, e eu caio por todos. olho de longe, tento me ater, eu tento me adequar, eu tento ser moleque de rua do avesso, mas eu não resisto e começa a se mexer no estômago aquele meu ente de ânimos aflorados, de revolução, de minha mão esquerda que é a que escreve, e eu corro para frente, eu toco no arame, eu tenho medo de me cortar, eu tento invadir, ocupar, e eu também abro as porteiras de minhas terras, talvez seja bom que elas sejam invadida às vezes, que alguém se ocupe delas, talvez a ocupação seja válida, talvez consigamos alcançar nossos objetivos, xampú para todos, mão esquerda para todos, muita terra, muito pão, muita paz, muito amor.

amor mesmo que o amor contradiga nossa vida.

7.1.08

"ano novo, vida nova"

bem. e um texto não postado.